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A narrativa.
(3) “Foi na cidade de Viseu, nessa linda povoação beiroa, que o facto se consumou, segundo rezam as recordações de uma escritora portuguesa do século XVII, Dona Maria da Glória, conhecida pela Probenda, e que usava nas letras o pseudónimo de Ana Gomes, descoberta pelo Padre Henrique Cid, falecido em 1910, amigo do passado, que rebuscou pelos Arquivos factos interessantíssimos, e que os escreveu e juntou numa colectânea de 50 livros com o título de Efemérides.” LAPA, Albino – Ob. Cit. Pg 12.
(7) CASTILHO, Liliana Andrade de Matos e – Geografia do quotidiano: A Cidade de Viseu no século XVI. Viseu: Edição Arqueohoje e Projecto Património, 2009.
(8) CASTILHO, Liliana Andrade de Matos e – Ob. Cit. Pg 164.
(9) CASTILHO, Liliana Andrade de Matos e – Ob. Cit. Pg 123.
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A narrativa.
“Em Junho de 1540, João de Almeida Torto, enfermeiro do hospital de Santo António, mestre das primeiras letras, exercendo também o mister de escrever cartas familiares e de amores (estas pelo dobro do preço) mandou deitar pela cidade o seguinte pregão:
Saibam todos os senhores habitantes desta cidade, que não terminará este mês sem se ver a maior das maravilhas, a qual vem a ser um homem desta cidade voar, com asas feitiças, da torre da Sé ao Campo de São Mateus, pelo que responde por sua pessoa e bens.
João de Almeida Torto.
Esta notícia alvoroçou a cidade toda e cada qual dos seus habitantes esperava com ansiedade a ocasião de ver tão estupenda maravilha. A pedido da mulher, impôs-lhe (ao Torto) o Juiz do Povo a obrigação de fazer testamento em benefício dela, pois, como filhos não havia, era para os irmãos se tal não fizesse. A pobre mulherzinha tanto lastimava aquela doidice do marido que muita gente comoveu, mas todos tinham no pobre louco confiança do bem êxito da empresa.
Segundo pregão anunciou o dia 20 de Junho pelas 5 horas da manhã. Na véspera, algumas pessoas, acompanhadas do Juiz do Povo, dirigiram-se a casa do inventor e pediram se lhes mostrava o seu maravilhoso invento. O bom do homem não só mostrou o invento, mas deu categóricas explicações do modo de obrar e do fim que tinha cada uma das peças.
As asas, eram de pano forte e duplas, isto é, eram duas de cada lado, sendo mais pequenas as inferiores e semelhavam uma asa de ave. Estas duas asas estavam ligadas por três argolas de ferro, enchumaçadas em trapos e era por elas que o Almeida devia meter os braços. Além disso estavam ligadas, por a parte superior, por duas dobradiças de ferro e pela parte inferior por um cinto de cabedal. Os sapatos eram de solas tríplices, havendo entre elas espaços para atenuar a queda. Tinha também um barrete do feitio duma cabeça de pássaro, com um bico enorme e aberto.
O inventor levou a sua complacência a vestir o aparelho e elevar-se alguns pés acima do solo e dar assim uma volta pelo quintal.
No dia seguinte, ainda a aurora não tinha despontado, e já o Campo de São Mateus estava coberto de espectadores que vinham dos povos e quintas circunvizinhas, e o Adro cheio de gente da cidade. Às 4 horas era enorme a multidão de povo. O novo Ícaro subiu à torre da Sé e para lá guindou por uma corda o seu aparelho, sendo neste serviço coadjuvado por algumas pessoas. A mulher estava à porta da Capela de Nossa Senhora dos Remédios, contemplando tristemente as manobras.
O homem, às 5 horas, precisamente, já preparado, saltou da torre e fazendo manobrar as asas descreveu demoradamente uma linha inclinada, tomando por mira a capela de São Mateus.
Foi bem até certo ponto, mas uma das asas deixou de trabalhar e o barrete caindo-lhe para os olhos o fez descrever uma linha em arco e sempre descendente até que ficou em pé sobre o telhado da capela de São Luís, mas logo caiu ficando sobre as asas. Dali o tiraram sem sentimento. Desembaraçando-o do aparelho viu-se que tinha o braço esquerdo deslocado no ombro e em volta da cintura a impressão do cinto. Um dos sapatos desapareceu na trajectória. Uma das dobradiças tinha emperrado de tal forma que nem a martelo se pode dobrar. O homem voltou a si, 2 horas depois, sem o menor juízo e tolo, morreu dias depois.
Ana Gomes - Da Colectânea do Padre H. Cid
- Lenda ou facto histórico ?
Esta primeira referência à história de João Torto surge-nos em 1922, no periódico local Comércio de Viseu, sem indicação de autor. Como fonte surge a referência à Colectânea do Padre Cid, à data já falecido, que citaria Ana Gomes, pretensa cronista viseense do século XVI ou XVII.
Apesar da incerta origem da informação seria esta a versão repetida, quase textualmente, por todos os que, até aos dias de hoje, se debruçaram sobre o assunto.
Em 1927 surge no Jornal O Século um artigo intitulado “Mestre João Torto – primeiro aviador português” assinado por Samuel Maia, na posse de quem, à data estaria a documentação do Padre Henrique Cid. Com ligeiros acertos de linguagem a narrativa é em tudo semelhante à anterior, bem como as fontes invocadas.
Em 1928 na obra “A Aviação portuguesa”(2) de Albino Lapa, João Torto é já referido como o precursor da aviação em Portugal, antecipando-se em séculos a Bartolomeu de Gusmão. A fonte da informação é, uma vez mais o Padre Henrique Cid, e por entreposta pessoa Ana Gomes, ou D. Maria da Glória. Em 1936 João Cid, na publicação “Aspectos de Viseu no século XVI” narra mais uma vez a mesma história, invocando as mesmas fontes mas indo mais longe na sua explicação. Ana Gomes teria vivido no século XVI e não XVII e, tendo escrito as suas memórias, seriam estas a fonte de informação do Padre Henrique Cid:
“…chama-se Ana Gomes ou Maria da Glória, é filha bastarda dum fidalgo de apelido Menezes, da casa de S. Miguel de Fornos, irmã duma outra D. Maria da Glória (3), morgada de S. Miguel. Esta Ana Gomes, que nos princípios da sua vida foi ou fingiu ser meretriz, acabou camarista da Rainha, com entrada e valimento no paço e o uso de D. com qualquer dos nomes que usasse. […] Morreu muito velha, depois de 1580, e bastante rica, na casa de S. Salvador – assassinada, segundo dizem as crónicas, por sicários ao serviço de Castela. Deixou memórias muito curiosas, hoje perdidas, excepto um ou outro excerto, ou antes cópias desses excertos, quasi todos traduzidos para o português de hoje.” (4)
Cristalizou-se assim no imaginário nacional a história de João Torto repetida até aos dias hoje pela
bibliografia mais ou menos especializada.(5)
Se as fontes invocadas já nos levantariam justificadas reservas, mais as confirmam as incoerências na descrição da cidade de Viseu no século XVI, enquanto cenário do desenrolar do drama de João Torto. A Capela de São Luís, onde o voador teria terminado o seu voo, embora com a designação de Ermida existia em 1540, como se depreende da acta do Cabido de 6 de Agosto de 1568 (6), mas o mesmo já não se pode dizer da Capela da Senhora dos Remédios que viria a ser construída apenas no século XVIII. Não existia no local da actual nenhuma outra, de igual invocação e cronologia mais antiga, mas ainda que tal acontecesse, nunca dessa localização seriam visíveis o desenrolar dos trabalhos na Sé uma vez que o lote do Arvoredo (7), existente à época, o impediria. Igualmente inexistente era o Hospital de Santo António, onde João de Almeida Torto exerceria a sua função de enfermeiro, uma vez que em 1540, na cidade de Viseu, encontram-se referidos apenas os hospitais de Cimo de Vila e da Regueira(8).
A invocação de “Campo de São Mateus” para o recinto da feira, (à época realizada em honra de São Jorge), é igualmente anacrónica uma vez que no século XVI era designado por “Rossio da Ribeira”(9). Se o mais provável é João Torto nunca ter existido, enquanto figura histórica, situada num determinado espaço e tempo, e actor da narrativa sobre ele construída, é incontornável a sua existência enquanto personagem cristalizada no imaginário local e nacional. A história, para lá da verdade dos factos, ganhou vida própria através de uma constante repetição e reinterpretação do mito. Assim sendo, não só João Torto existiu como ainda existe. Celebra-se o espírito empreendedor, se não o do barbeiro voador, o de quem lhe dando forma o eternizou.
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FONTES
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Texto de Liliana Castilho in VISEUPÉDIA Nº06, "João Torto" - Jun. 2011
Anotações:
(1) S.a. – O Homem Voador. Comércio de Viseu. Viseu. Ano XXXIV, n.º 9294 (1922).
(2) LAPA, Albino - Aviação Portuguesa. Lisboa : Imprensa Libânio da Silva, 1928.(3) “Foi na cidade de Viseu, nessa linda povoação beiroa, que o facto se consumou, segundo rezam as recordações de uma escritora portuguesa do século XVII, Dona Maria da Glória, conhecida pela Probenda, e que usava nas letras o pseudónimo de Ana Gomes, descoberta pelo Padre Henrique Cid, falecido em 1910, amigo do passado, que rebuscou pelos Arquivos factos interessantíssimos, e que os escreveu e juntou numa colectânea de 50 livros com o título de Efemérides.” LAPA, Albino – Ob. Cit. Pg 12.
(4) CID, João - Aspectos de Viseu no século XVI. Lisboa: S. Ed., 1936. Pg 32.
(5) SILVA, Joaquim Palminha – Os Gloriosos e trágicos aventureiros dos balões. História. S.l.: S.Ed. Ano XIII, nº 145 (1991).
(6) “…que doje em diante não vão por dia de são luís bispo em procisão a irmida de são luís que esta na Ribeira nem capitular nem particular
mente algum dos beneficiados da dita see…” A.D.V. F.C. Lv. 1/724 Fl. 1.(7) CASTILHO, Liliana Andrade de Matos e – Geografia do quotidiano: A Cidade de Viseu no século XVI. Viseu: Edição Arqueohoje e Projecto Património, 2009.
(8) CASTILHO, Liliana Andrade de Matos e – Ob. Cit. Pg 164.
(9) CASTILHO, Liliana Andrade de Matos e – Ob. Cit. Pg 123.
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