A conquista do ar

Primeiro voo dos irmãos Wright
Há cem anos, os donos de uma oficina de bicicletas fizeram voar um aparelho a motor. Na planície ventosa de Kitty Hawk, na Carolina do Norte, um voo de 36 metros realizado em 12 segundos, faziam Orville e Wilbur Wright entrar na História.

Voar, ultrapassar os limites terrenos e, alcançando o céu, aproximar-se dos deuses, parece ter sido uma aspiração constante da humanidade, bem documentada em numerosos mitos, dos quais o de Ícaro é o mais conhecido.

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Copiar a natureza, construindo engenhos semelhantes a aves como, no início do século XVIII, a fantasiosa passarola do padre Bartolomeu de Gusmão, ou procurar desenvolver os princípios mecânicos necessários ao voo, como fez Leonardo da Vinci há quinhentos anos, tais foram os principais caminhos seguidos na conquista dos ares.
Dirigível de Santos-Dumont em 1901 

Traduzindo o conceito de mais leve do que o ar, apresentavam-se toda a espécie de balões e dirigíveis, a ar quente ou a hidrogénio, tendo os primeiros passos sido ensaiados quando, em 21 de Novembro de 1783, os irmãos Montgolfier subiram aos céus de Paris no primeiro voo livre tripulado.

Um longo caminho viria a ser percorrido, com vista a proporcionar uma energia controlável aos balões que permitisse dirigir o voo, o que só veio a ser plenamente atingido no início do século XX, com o motor a gasolina.

Em 1901 o brasileiro Alberto Santos-Dumont realiza, durante 30 minutos, um voo de 11 km em balão, perfeitamente controlado, em redor da torre Eiffel. No ano anterior, o conde alemão Ferdinand Zeppelin tinha realizado o primeiro voo de um estranho dirigível em forma de charuto, com 128 metros de comprimento, que ficaria conhecido pelo nome do seu criador e constituiria o maior sucesso, quer em termos militares, tendo sido usado na I Guerra Mundial para bombardear Londres, quer no transporte de passageiros, com uma utilização regular até 1937.

Voo de Alberto Santos-Dumont em 1906
Partindo com um atraso de setenta anos nesta corrida pela conquista dos ares, estavam os que apostavam nos aparelhos mais pesados do que o ar. Em 1853, Sir George Cayley leva à prática as suas teorias sobre navegação aérea, realizando um primeiro voo de 130 metros num planador tripulado pelo seu cocheiro. Outros seguiriam o seu exemplo, da Alemanha à Nova Zelândia, passando dos planadores aos ensaios, algo desastrosos, de voo com motor. Até que, a 17 de Dezembro de 1903, se chega à tentativa bem sucedida dos irmãos Wright, que puseram o seu “Flyer” nos ares, tripulado, com energia própria e controlo de altitude e direcção, realizando uma série de voos, dos quais o mais extenso ultrapassaria os 250 metros. Por resolver ficava, entre outros, o problema da descolagem sem ajuda do vento, resolvido de forma expedita com o recurso a uma catapulta. O sucesso dos irmãos Wright, testemunhado por pessoas e fotografias, não foi divulgado publicamente na altura, por razões que se prendiam com a protecção da patente do invento.

Bleriot na partida para a travessia do
Canal da Mancha no dia 25 de Julho de 1909.
Desta forma, para o grande público, a aviação com motor nasceu a 13 de Setembro de 1906 quando, em Paris, o brasileiro Alberto Santos-Dumont realiza o primeiro voo público, levando o seu biplano, construído em tecido e bambu, a percorrer a distância de 221 metros. A conquista dos ares entrará então em ritmo acelerado.

O francês Louis Blériot torna-se, em 1909, o primeiro aviador a atravessar o Canal da Mancha, enquanto nos E.U.A., em 1911, se realiza o primeiro voo costa a costa, com a duração de 49 dias.

O advento da I Grande Guerra favorecerá o desenvolvimento da aviação, tornando-se os aparelhos mais fiáveis, mais rápidos e com maior alcance, de modo a cumprirem as missões de reconhecimento e bombardeamento em que eram utilizados, a par dos zeppelins. Muitos dos milhares de aparelhos então construídos serão, após o armistício, reconvertidos para o transporte de correio e de passageiros, permitindo o desenvolvimento da aviação comercial.

Gago Coutinho e Sacadura Cabral
No Verão de 1919 é inaugurada a primeira ligação aérea regular, operando diariamente entre Londres e Paris, enquanto nos anos seguintes se assiste à formação de companhias aéreas. O grande desenvolvimento dos voos intercontinentais dar-se-á a partir do mediático voo solitário sem escala realizado por Charles Lindbergh em 1927, demorando pouco mais de 33 horas na ligação entre Nova Iorque e Paris.

Antes da viagem de Lindbergh, já os portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral tinham realizado a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, unindo Portugal ao Brasil, entre Março e Junho de 1922, a bordo dos pequenos hidroaviões Lusitânia e Santa Cruz. Para além da proeza, a importância desta viagem residiu, ainda, na confirmação do rigor dos métodos de navegação estabelecidos por Gago Coutinho que, para o efeito, utilizou um sextante por si inventado, permitindo determinar os rumos com precisão.

Descolagem do Lusitânia (Fairey IIID Mk II Transatlantic)
junto à torre de Belém em 1922.

Até à II Guerra Mundial, os voos de longa distância eram realizados principalmente em grandes hidroaviões de quatro motores: dessa forma resolviam-se os problemas relacionados com a fraca resistência dos trens de aterragem e com a insuficiente quantidade e qualidade dos aeroportos. A madeira, o arame e a lona vão dando lugar aos metais, na construção dos aviões. As tecnologias desenvolvidas nesta área durante o conflito mundial, irão permitir, logo após o seu termo, a ultrapassagem de um limite antes inimaginável: o da barreira do som, quebrada pela primeira vez em 1947, por Charles (“Chuck”) Yeager, que seis anos mais tarde estabeleceria novo recorde de velocidade ao atingir 2.660 km/h, superando em dobro a velocidade do som.

A era do avião a jacto afirma-se por todo o mundo a partir de 1958: viagens mais rápidas e confortáveis levarão a um aumento sempre crescente da procura do transporte aéreo a partir dos anos sessenta. O exclusivismo de voar, até aí um acto só acessível aos muito ricos – o ‘jet set’ – irá dar lugar ao transporte de massas, em aviões com uma capacidade e alcance cada vez maior.

Descolagem de Charles Lindbergh, em 1927
Contrariando a tendência para o gigantismo mas na vanguarda da corrida pela rapidez, o Concorde, cujo primeiro voo experimental teve lugar em 1969, consagrava a opção pelo transporte a velocidade supersónica. Com os seus quatro motores, este elegante avião era capaz de cruzar os céus a 18 km de altitude, transportando apenas 100 passageiros a uma velocidade média de 1.535 km/h, podendo atingir a velocidade máxima de 2.125 km/h. Representando o que de melhor a indústria franco-britânica era capaz de produzir, o Concorde entrou ao serviço em Janeiro de 1976 e manteve-se como o mais seguro dos aviões até ao acidente que, a 25 de Julho de 2000, vitimou 113 pessoas perto de Paris. Depois de mais de um ano parado para testes, os catorze aviões retomaram as operações mas o seu destino estava já traçado: com um fraco retorno do investimento e custos de manutenção elevados, em Abril de 2003 a British Airways e a Air France anunciaram a retirada do Concorde. A 23 de Outubro fechava-se uma das páginas mais importantes da história da aviação.

Em “O correio da Manhã”, 2003-11-16

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