Quando os Americanos atacaram Macau (1945)



Desde a ocupação de Hong Kong em 8 de Dezembro de 1941, até ao final da Guerra, Macau ficaria totalmente isolado e sujeito a bloqueios marítimo e terrestre. Apesar do isolamento provocado pelo cerco, chegaram à cidade um elevado numero de refugiados que provocaram a quintuplicação da população residente, que quase alcançou os números actuais, porém numa menor extensão territorial, agravando a escassez de alimentos e outros bens, conduzindo ao drástico racionamento de géneros alimentícios entre outras dificuldades.

O total isolamento de Macau neste período, repetidos rumores de que os japoneses teriam decidido entrar pelas Portas do Cerco (fronteira entre o território português de Macau e a China) aumentavam os receios de uma invasão. que ganhavam outra dimensão com a presença de 20 mil soldados nipónicos do outro lado da fronteira e com um “quartel-general” japonês numa casa da Avenida Ouvidor Arriaga.

Porém o receado ataque não viria das forças japonesas!
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Em 16 de Janeiro de 1945, a aviação americana atacou a cidade.
Porta do Cerco

Os EUA posteriormente justificariam que a razão principal do ataque fora a destruição dos depósitos de gasolina existentes no hangar do antigo Centro de Aviação Naval (CAN) de Macau, no Porto Exterior que supunham estar em território ocupado pelos japoneses, que ficou reduzido a escombros. Além da total destruição do CAN os ataques provocaram cinco mortos, além de vários feridos, danos no quartel de S. Francisco e na fortaleza de D.Maria, onde se encontrava o posto de rádio. O ataque, repetido em 5 de Março e 7 de Abril foi realizado por esquadrilhas da “Taskforce 38” da USAF, sob o comando do Almirante William Halsey.

Leonel Barros, na altura a prestar serviço militar descreve o ataque americano:
«Às nove e meia do dia 16 de Janeiro de 1945, numa manhã de sol a poucos meses do fim da guerra, eu estava de sentinela junto à Porta de Armas do quartel de São Francisco quando vi uma esquadrilha de seis caças. Voavam muito baixo e faziam evoluções sobre o centro da cidade. Momentos depois, voaram em direcção ao hangar do antigo Centro de Aviação Naval (*) no Porto Exterior e lançaram sobre o local algumas bombas, ao mesmo tempo que disparavam tiros de metralhadoras. 
Inicialmente, pensei tratar-se de um combate aéreo entre aviões americanos e japoneses. No entanto, apercebi-me que estava errado quando o fumo negro e espesso começou a subir ao céu e o hangar da Aviação Naval ficou em chamas.(...)

CAN de Macau (cerca de 1941)
Lembro-me de ter olhado para o céu e ver que dois dos seis caças estavam a “picar” em direcção ao local onde me encontrava. Pressentindo que iam abrir fogo, não tive outra solução senão esconder-me atrás da guarita. Nesse mesmo instante, ouviram-se tiros que atingiram a Porta de Armas e o interior do edifício. As balas partiram vidros, causaram estragos no terraço, perfuraram as canalizações e os esgotos. Tive sorte, apenas fui atingido no capacete e nas costas por vidros, estilhaços de tijolos e areia. No interior do quartel, alguns soldados estavam com ferimentos ligeiros. O pânico foi maior por ninguém saber como transportar os feridos para o Hospital Conde de São Januário. Um dos soldados conseguiu retirar da garagem do quartel uma moto com site-car, onde foram transportados os feridos. 
O percurso até ao hospital foi muito arriscado, tendo sido necessárias muitas manobras. Ao longo da subida da Calçada de São Francisco, o condutor da moto foi tentando escapar aos disparos de um dos caças que o perseguia. Ao mesmo tempo, o quartel continuava a ser atacado e, por isso, os militares não conseguiam sair das instalações para montar o material de defesa antiaéreo no porto mais alto da Colina da Guia. Só conseguimos sair do quartel após a retirada de todos os aviões, por volta das 11 e 45 minutos. O rancho, normalmente servido às 11 da manha, só chegou duas horas depois. Enquanto almoçávamos, sobrevoavam Macau cerca de 45 aviões fortalezas voadoras que, vistos de baixo, pareciam não ser maiores do que a palma de uma mão.
Muitos residentes pensaram que Portugal tinha entrado no conflito mundial, razão pela qual Macau estava agora a sofrer as consequências dessa decisão. A meio da tarde desse mesmo dia, largas centenas de pessoas foram-se deslocando ao local do ataque, numa tentativa de perceber o que tinha acontecido. Mas, inesperadamente, a esquadrilha de aviões reapareceu e lançou mais duas bombas com o objectivo de destruir por completo o hangar. No local estava armazenada uma grande quantidade de combustível (anteriormente utilizado nos hidroaviões de Macau) que, nessa manhã, deveria ter sido entregue aos japoneses, em troca de arroz.
Afinal, através da rádio “Voices of America”, ficou a saber-se mais tarde que a esquadrilha de seis aviões era americana. Durante esse dia, as forças militares dos Estados Unidos atacavam várias posições japonesas em Hong Kong, várias cidades da China e... Macau. 
Muitos residentes garantem que durante o ataque a Macau era possível avistar da costa um porta aviões e alguns navios de guerra. Várias bombas foram lançadas sobre o hangar, destruindo-o quase por completo. O local ficou reduzido a um monte de ferros retorcidos, uma fachada e duas paredes laterais. Do Museu de Pescarias, instalado na cave do hangar, nada restou.
Estação de rádio D. Maria (cerca de 1950)
Aparentemente, o primeiro ataque ao hangar, inicialmente apenas com rajadas de metralhadora, terá sido só um aviso para que ninguém se aproximasse e para que o pessoal da marinha, que lá vivia com as famílias, abandonasse o local. Foram também disparados tiros às viaturas oficiais e do Corpo de Bombeiros, impedindo-as de chegar ao hangar. Sentindo-se em perigo, muitos ocupantes saltaram dos veículos em andamento e rastejaram até ao abrigo mais próximo. Um automóvel dos militares japoneses também tentou chegar ao hangar, mas foi obrigado a retroceder perante o fogo dos caças e a perseguição até à Rotunda Ferreira do Amaral. Os militares terão sido salvos pela presença no local de centenas de pessoas, facto, que terá dissuadido os aviões americanos de continuar a atacar os inimigos japoneses. 
Curiosamente, enquanto tudo isto decorria, pouco ou nenhum movimento se verificou no consulado britânico que funcionava na Praça Lobo D’Ávila. Desconfiou-se depois que terá partido daqui a denúncia dos aliados da existência de combustível no hangar. 
Muitos outros locais do território acabaram também por ser atingidos por balas e estilhaços. A estação de rádio de D. Maria foi atingida por tiros de metralhadora e por algumas bombas que, por alguma razão desconhecida. acabaram por não explodir, causando apenas alguns danos materiais. Por outro lado, registou-se um incêndio num gerador dos Serviços Autónomos de Electricidade do Leal Senado, localizado próximo do jardim da Montanha Russa, onde funcionava a central da MELCO (a empresa de fornecimento de energia eléctrica que perdeu a concessão durante a guerra e voltou a adquiri-la depois de alcançada a paz). 
O navio “Masbate”, que se encontrava fundeado próximo do Bairro 28 de Maio, foi igualmente atingido. Um ataque que provocou alguns feridos. No quartel de São Francisco também se registaram feridos. Os danos estenderam-se a moradias do Bairro Tamagnini Barbosa, à antiga Missão de Fátima e ao velho relógio que existia no Arco das Portas do Cerco. As balas perfuraram igualmente os automóveis do governador Gabriel Maurício Teixeira e do chefe dos Serviços de Economia, Pedro José Lobo, assim como algumas viaturas do Corpo de Bombeiros.
Quartel de S. Francisco (cerca de 1937)
O governo português protestou contra estes acontecimentos e pediu igualmente responsabilidade por considerar o ataque “ um vil atentado contra a soberania portuguesa nestas paragens”. Os Estados Unidos responderam de imediato, manifestando o profundo pesar e anunciando a abertura de um inquérito para apuramento de responsabilidades. Mas, na verdade, nos meses seguintes sucederam-se outros ataques americanos, embora de menores dimensões. 
Terminada a guerra, esteve em Macau uma missão militar americana com o objectivo de verificar os estragos nos locais atingidos e definir as indemnizações a atribuir aos feridos.(**) 
Ocasionalmente, após este ataque, vários bombardeiros sobrevoavam Macau. Mais comuns eram os aviões «Catalina» que, nas noites sem luar, voavam a poucos metros da água e lançavam minas sobre as águas que os japoneses utilizavam para navegar até Hong Kong. Às vezes ouvia-se o rebentar das minas.»

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FONTES
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 Texto de Leonel Barros, investigador do passado de Macau, publicado no Jornal Tribuna de Macau em Dezembro de 2009

(*)
O CAN, Centro de Aviação Naval de Macau era uma hidrobase instalada na ilha da Taipa em 1927 para apoio às forças navais que combatiam a pirataria nos mares da China. O centro foi desactivado em 1933 mas reactivado em 1937, por ocasião da Guerra Civil chinesa e da invasão deste país pelo Japão. Em 1940 o centro foi transferido para as novas instalações construídas no Porto Exterior (ver imagem abaixo). Em 1942 foi definitivamente desactivado.
(**)
Em 1950, reconhecendo o erro, o Governo dos EUA indemnizou Portugal num montante superior a 50 milhões de Dólares. Informação em «REVISTA DA ARMADA • JULHO 2002»



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